Projeto de isenção do IR até R$ 5 mil pode aquecer economia — e beneficiar até os mais ricos – Por Leonardo Stoppa
Além de aliviar a carga sobre os de menor renda, a medida gera impulso no consumo — mas depende de cautela para evitar inflação que neutralize os ganhos

Foi aprovado na Câmara um projeto que amplia a faixa de isenção do Imposto de Renda para quem recebe até R$ 5 mil mensais. Embora seja vendido como um mecanismo de “tirar dos ricos para dar aos pobres”, essa política tem potencial para dinamizar o mercado como um todo — inclusive para a classe média alta e os mais ricos.
Quem vive com receita apertada não poupa — gasta em bens básicos, alimentos, transporte, vestuário, remédios. Ou seja, qualquer incremento de renda tende a ir direto para o mercado, imediatamente, em forma de demanda efetiva. Esse gasto circula, atinge fornecedores, distribuidores, lojistas — muitos deles pertencentes à classe média. Logo, essa liquidez que sai dos cofres públicos “injetada” na ponta mais baixa retorna como volume de vendas nos segmentos médios e até sofisticados.
Esse movimento gera efeitos de encadeamento:
- o varejo vende mais → encomendas de estoque, logística, transporte → empresas de serviço e indústria recebem mais pedidos → fornecedores de matérias-primas se beneficiam → empregos e renda aumentam no processo.
- parte desse rendimento extra será tributada de novo (ICMS, ISS, IPI) e rentabilizada pelo sistema financeiro.
Em outras palavras: o estímulo pode reverberar para além do público diretamente beneficiado.
Essa lógica é próxima aos conceitos de gasto de redistribuição como política de estímulo fiscal em períodos de crescimento lento — algo debatido entre economistas keynesianos e heterodoxos.
Se se lançar muita demanda de uma vez, sem que a oferta (produção, estoques, logística) cresça no mesmo ritmo, haverá pressão sobre preços de alimentos, bens de consumo duráveis, matérias-primas e transporte. Esse aumento corrói o poder de compra real da população, e especialmente dos mais pobres — afinal, eles são os primeiros a sentir o repique dos preços nos itens essenciais.
Se essa inflação for generalizada, o ganho nominal da isenção se desfaz, e a promessa de justiça tributária se converte em “presente com veneno”.
O próprio projeto reconhece esse desafio: recomenda que a isenção seja implementada de modo gradual, permitindo que o mercado ajuste oferta, capital e produção antes de absorver mais demanda.
Outro ponto importante: parte dos contribuintes já tem imposto retido na fonte, o que libera o benefício imediatamente. Outros recolhem o IR em momentos pontuais — nesse caso, o impacto no consumo pode se diluir, reduzindo o risco inflacionário.
Há uma teoria econômica chamada Efeito Cantillon que diz que quem recebe o dinheiro novo primeiro (quem está mais próximo da fonte de emissão) se beneficia mais — porque pode gastar antes que os preços subam.
No cenário desse projeto, se os bancos, grandes empresas e setores próximos ao governo forem beneficiados pela liquidez antes do “povão”, acabam capturando boa parte do ganho antes de ele circular ao resto da população.
Isso reforça que não basta declarar “é ajuda ao pobre” — é preciso cuidar da ordem de injeção e do controle de fluxos de capital.
Qual tática para que o projeto funcione “sem boicotar” a si mesmo
Para que os ganhos não virem contradições, algumas condições precisam ser asseguradas:
a) Implementação gradual e escalonada
Evitar aplicar a isenção de uma só vez conforme o teto de R$ 5 mil pode evitar pressões instantâneas sobre a inflação. Subidas graduais evitam choque de demanda.
b) Fortalecimento da oferta e da capacidade produtiva
É preciso incentivar a produção nacional, logística, cadeias de suprimentos, estoques regionais e modernização industrial. Se o país não estiver pronto para entregar — lojas vazias, prateleiras escassas — o efeito será apenas inflação.
c) Estrutura forte de fiscalização e taxação dos muito ricos
A compensação prometida depende de tributar dividendos, grandes rendas e institutos de alíquota mínima. Se esses mecanismos forem frágeis ou brechados, toda a lógica redistributiva se esfarelará.
d) Monitoramento de preços e gatilhos anti-inflação
Estabelecer parâmetros de tolerância de inflação (limiares), mecanismos de contenção (controle de margens, subsídios setoriais transitórios) e coordenação entre política fiscal e monetária para evitar explosões inflacionárias.
e) Transparência e responsabilização
É necessário que o cidadão comum veja quem está pagando, como os recursos estão sendo redistribuídos e quais entidades lucram com os arranjos — para evitar captura pela elite ou favorecimento político.
Se bem desenhada, a medida representa uma jogada estratégica: redistribuição real somada à ativação da economia. Mas se for abrupta ou descoordenada, pode se tornar “presente envenenado” — lucro momentâneo convertido em inflação para todos.
Para a esquerda que deseja transformação estrutural, este é um teste de coerência: não basta propor um “alívio para os pobres” — é preciso garantir que os instrumentos de poder (fiscal, monetário, tributário) ajudem, e não boicotem, o próprio propósito.